10.9.10

Augusto dos Anjos

A Caridade

No universo a caridade
Em contraste ao vício infando
É como um astro brilhando
Sobre a dor da humanidade!

Nos mais sombrios horrores
Por entre a mágoa nefasta
A caridade se arrasta
Toda coberta de flores!

Semeadora de carinhos
Ela abre todas as portas
E no horror das horas mortas
Vem beijar os pobrezinhos.

Torna as tormentas mais calmas
Ouve o soluço do mundo
E dentro do amor profundo
Abrange todas as almas.

O céu de estrelas se veste
Em fluidos de misticismo
Vibra no nosso organismo
Um sentimento celeste.

A alegria mais acesa
Nossas cabeças invade...
Glória, pois, à Caridade
No seio da Natureza!

Estribilho

Cantemos todos os anos
Na festa da Caridade
A solidariedade
Dos sentimento humanos.




Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Cecília Meireles

                           Tenho fases, como a Lua; fases de ser sozinha, fases de ser só sua.



Retrato


"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"


Nem tudo é fácil

É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer triste.
É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada
É difícil valorizar um amor, assim como é fácil perdê-lo para sempre.
É difícil agradecer pelo dia de hoje, assim como é fácil viver mais um dia.
É difícil enxergar o que a vida traz de bom, assim como é fácil fechar os olhos e atravessar a rua.
É difícil se convencer de que se é feliz, assim como é fácil achar que sempre falta algo.
É difícil fazer alguém sorrir, assim como é fácil fazer chorar.
É difícil colocar-se no lugar de alguém, assim como é fácil olhar para o próprio umbigo.
Se você errou, peça desculpas...
É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?
Se alguém errou com você, perdoa-o...
É difícil perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Se você sente algo, diga...
É difícil se abrir? Mas quem disse que é fácil encontrar
alguém que queira escutar?
Se alguém reclama de você, ouça...
É difícil ouvir certas coisas? Mas quem disse que é fácil ouvir você?
Se alguém te ama, ame-o...
É difícil entregar-se? Mas quem disse que é fácil ser feliz?
Nem tudo é fácil na vida...Mas, com certeza, nada é impossível
Precisamos acreditar, ter fé e lutar
para que não apenas sonhemos, Mas também tornemos todos esses desejos,
realidade!!!

SONETO ANTIGO

Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

CANÇÃO DE OUTONO

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o própro coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando áqueles
que não se levantarão...

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

9.9.10

Os Estatutos do Homem


                Os Estatutos do Homem – Ato Institucional Permanente


Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.


Artigo IV

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.


Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.


Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.


Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.



Thiago de Mello


Santiago do Chile, abril de 1964

Ferreira Gullar


Barulho

Todo poema é feito de ar
apenas:
            a mão do poeta
            não rasga a madeira
            não fere
                         o metal
                         a pedra
            não tinge de azul
            os dedos
            quando escreve manhã
            ou brisa
            ou blusa
                         de mulher.
 
O poema
é sem matéria palpável
           tudo
           o que há nele


           é barulho
                      quando rumoreja
                       ao sopro da leitura.



Meu povo, Meu poema

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta