28.7.11

NO MEIO DA NOITE

Acordei meu bem pra lhe contar meu sonho:
sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escuro.
Não fosforesciam, nem cheiravam, nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
"A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão inchando úmidos, vão brotar sinos.
" Doía como um prazer. 
Vendo que eu não mentia ele falou:
as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também.
Respondi que queria ser singela e na mesma hora, 
singela, singela, comecei a repetir singela.
A palavra destacou-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou. 
O que foi? - ele disse. 
- As buganvílias...
Como nenhum de nós podia ir mais além, 
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela e dormir de novo.

                                                             Adélia Prado

Trem-de-ferro...



Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

                                     Adélia Prado

Amor feinho

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

                                  Adélia Prado

A criança aprende o que vê!

Pai, eu estou te observando!

O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (VI)


‘Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.



‘Stamos em pleno mar… Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro…
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro…


‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?…



‘Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas  
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas…



Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.



Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento…
E no mar e no céu — a imensidade!



Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!



Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!



Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia…

………………………………………………….



Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!



Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.



II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.



Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!



O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!



Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu…
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!…



III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais … inda mais… não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!



IV

Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…



Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!



E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…



Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!



No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”



E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Qual um sonho dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…



V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!



Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…



São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão…



São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma — lágrimas e fel…
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.



Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis…
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus …
…Adeus, ó choça do monte,
…Adeus, palmeiras da fonte!…
…Adeus, amores… adeus!…



Depois, o areal extenso…
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos… desertos só…
E a fome, o cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.



Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje… o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…



Ontem plena liberdade,
A vontade por poder…
Hoje… cúm’lo de maldade,
Nem são livres p’ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute… Irrisão!…



Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…



VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…



Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

                                                                                        Castro Alves


São Paulo, 18 de abril de 1869. (O Poeta, nascido em 14.03.1847, tinha apenas 22 anos de idade)

15.7.11

POEMA PARA UM ALIENADO

Nada se converte fora de si
                                                    apesar dos deuses
E não existe exoneração,
                                                    existe vocação
Não significam tanto, tantas verdades,
                                                    em verdade
Lastro de carne e alma
os homens se prolongam
                                                    nas semeaduras
                                                    e se arrancam nas segas
e porque caminham com os ombros em forma de arco
                                                    de tanto visar o solo
e porque as paisagens os arrastam
                                                     conhecem pouco do universo


No entanto, podemos ser próximos
                                                     sem sermos anexos,
                                                     à imagem do tambor
                                                     pleno de velhas mensagens
                                                     da floresta tão fechada
                                                     como o ventre antes da madurez


Tudo é determinado como a conjugação das coisas
A plenitude dista sempre um ponto além
e as genituras não 'transpõem
os corpos de ensaio


                                                     A vida lembra um catavento
                                                     fatigado de tantas direções


                                                      Morte — feixe de crimes a constranger


E porque o núcleo é onde tudo cessa
nada se converte fora de si


                                                                                                                        Lindolf Bell

PROCURO A PALAVRA PALAVRA

Não é a palavra fácil

que procuro.
Nem a difícil sentença,
aquela da morte,
a da fértil e definitiva solitude.
A que antecede este caminho sempre de repente.
Onde me esgueiro, me soletro,
em fantasias de pássaro, homem, serpente.

Procuro a palavra fóssil.
A palavra antes da palavra.

Procuro a palavra palavra.
Esta que me antecede
E se antecede na aurora
De na origem do homem


Procuro desenhos
dentro da palavra.
Sonoros desenhos, tácteis,
Cheiros, desencantos e sombras.
Esquecidos traços. Laços.
Escritos, encantos re-escritos.
Na área dos atritos.


Em ritos ardidos da carne
e ritmos do verbo.
Em becos metafísicos sem saída.

Sinais, vendavais, silêncios.
Na palavra enigmam restos, rastos de animais,
Minerais da insensatez.
Distâncias, circunstâncias, soluços,
Desterro.

Palavras são seda, aço.
Cinza onde faço poemas, me refaço.

Uso raciocínio.
Procuro na razão.
Mas o que se revela, arcaico, pungente,
eterno e para sempre, vivo,
vem do buril do coração.

                                         LINDOLFO BELL

12.7.11

Coração amordaçado

Meu coração só
só tem saudades
                        ai mar que cismo
                        que estalem ondas
lenitivamente...

                        tem cuidado coração
                        vivas do lado esquerdo
agressivamente...

          há um tempo comprometido
          fazendo pausa na aurora

perigosamente...

Meu coração só

só tem saudades
                       ai mar que cismo
                       que estalem ondas
agressivamente...
                          tem cuidado coração
                          vives do lado esquerdo
perigosamente...


         há muito tempo comprometido
         fazendo pausa na aurora
estupidamente...   


                                                       Antonio Thadeu Wojciechowski

AOS PEDAÇOS

Monte-me companheira
como um quebra-cabeça
quase insolúvel


junte-me companheira
pedaço por pedaço
até fazer-me inteiro

do meu coração não sei
há muito tempo saiu
e se perdeu de mim

monte-me companheira
pedaço por pedaço

até fazer-me insolúvel

junte-me companheira
como um quebra cabeça
quase inteiro

do meu coração não sei
há muito tempo saiu
e não me mandou noticias

        Antonio Thadeu Wojciechowski

DA JANELA

Do que me serve a velha canção
quando me tenho prostado à janela do mundo
mesquinhas têm sido minhas aspirações
hipócritas os meus gritos.

Ai, mãe que consolo resta agora?
a miséria se espalha no corpo frio da cidade
e a escuridão é constante e assustadora.
Como estancar mãe, o sangue em meu canto?

Reduzir... Reduzir atômicamente
como única resposta aos crimes
às brutalidades em nome da verdade
nestes tempo de direito e força

Ver crianças mãe, da janela do mundo
famintas, inocentes e marginalizadas
Ai mãe que história resta agora?
Nada além deste poema?

                                               Antonio Thadeu Wojciechowski